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Nem um autor de novela ousaria escrever uma história tão triste

Momento Lifetime
Por Lifetime Brasil el 23 de July de 2022 a las 00:30 HS
Nem um autor de novela ousaria escrever uma história tão triste-0

Eu sou uma noveleira assumida. Consumo tanta novela, que ainda ontem pela manhã, antes da tragédia que o dia nos reservaria, uma amiga me perguntou: "e que horas você vive?"

 

Eu me envolvo TANTO com novelas que ao entrevistar determinados atores, já os chamei pelos nomes de seus personagens. Situações que renderam micos, mas risadas sempre. Eu sou dessas: choro com reencontros da ficção, fervo de raiva com os vilões, suspiro com as mocinhas. A novela é uma coisa tão de dentro da nossa casa, né?

 

Novelas definem tendências comportamentais e de consumo. Por mais que a gente acredite ingenuamente que ela é que retrata o nosso momento, é o nosso cotidiano que é transformado pelas novelas. Essa é a força da novela no Brasil.

 

Muitas vezes vemos a ficção se misturar com a realidade e vice-versa e isso causa um abalo dentro da gente. E foi o que aconteceu nesta quinta, 15 de setembro, assim que começaram a surgir as primeiras notícias sobre o desaparecimento do ator Domingos Montagner.

 

"Desapareceu, tipo, está perdido na região, sem celular?" "Não, sumiu no rio". Todo mundo que recebia a notícia, reagia com um silêncio onde se podia ouvir um "ai meu Deus".

 

Até porque, justamente também pelo alcance de uma novela, agora todo mundo sabia quem era o Velho Chico. Apesar de cortar cinco estados brasileiros, o nosso maior rio era ainda um grande desconhecido para muitos de nós.  Graças às belíssimas imagens feitas pelo diretor Luiz Fernando Carvalho, há mais de seis meses estamos sendo confrontados diariamente com a opulência do São Francisco, com a sua dimensão e a sua imensidão arrebatadoras. Graças ao texto de Benedito Ruy Barbosa, autor da novela, entendemos que o Chico era uma verdadeira entidade.

 

Civilizações bem ligadas à natureza sempre entenderam os fenômenos naturais como divindades. Os antigos egípcios, por exemplo, viam no rio Nilo a representação do deus Hapi - e se o deus estava "bravo" com seu povo, o rio tratava de castigá-los.

 

O Velho Chico é um deus brasileiro. A trama da novela gira em torno da conexão espiritual que as pessoas podem ter com aquele rio. Assim como Santo dos Anjos, personagem de Domingos, que encontrou a vida três vezes "nos braços" do rio São Francisco: a primeira, ainda bebê, quando a família retirante teve que fugir da seca do sertão e encontrou a redenção às suas margens. A segunda, quando conheceu Tereza, o amor de sua existência, em uma procissão fluvial. E a terceira, ao sofrer um atentado a bala, foi acolhido pelo rio e devolvido à vida.

 

Mas a vida foi um autor de novela muito mais ousado e cruel. Quis o Velho Chico que seu nome e o de Domingos andassem eternamente atrelados. Não bastou a atuação precisa dele, que, sempre muito elogiada, certamente figuraria como exemplo de interpretação por muitas gerações. O rio exigiu mais de alguém que sempre ofereceu tanto.

 

Domingos não foi um ator que nos acompanhou uma vida toda. Sua carreira na TV tinha apenas 8 anos. Assim que surgiu, passou a ser disputado por autores, que precisavam não apenas do seu tipo físico másculo e maduro, mas também do seu repertório, que ficava evidente em olhares, gestos e nos mínimos detalhes.

 

Três trabalhos dele especificamente me marcaram muito. O primeiro, Cordel Encantado, era o estilo de trama  que eu gosto, conto de fadas novelesco. Ali ele era Herculano, um mito do sertão, temido e respeitado. O segundo foi Joia Rara, em que ele deu vida a Raimundo Correia, um idealista, que representava aqueles primeiros homens que começaram a lutar por um país menos desigual. E o terceiro e mais forte foi como Miguel, em Sete Vidas, uma novela que até hoje me arrepia e me faz chorar. Um homem em conflito, que fugiu de laços e amarras na sua vida e se descobriu pai de sete filhos, nascidos a partir de uma doação de sêmen que ele havia feito na juventude. Perdi as contas de quantas vezes chorei com as angústias de Miguel, teve vezes de doer o peito mesmo. Esse era o meu grau de envolvimento com essa novela e com esse personagem.

 

Com tão pouco tempo de carreira, não é exagero dizer que Domingos parte no auge da sua carreira. Todo ator sabe que o topo é ser o protagonista da novela das 9. A emissora ainda não sabia qual seria exatamente a sua trama do horário, mas já sabia que o papel principal era de Domingos. Quem acompanha os bastidores da TV, sabe que ele seria o "mocinho" de A Lei do Amor, que foi adiada, pra dar lugar a Velho Chico. Como a Globo queria Domingos de todo jeito, nesse momento, ele foi transferido de novela e assumiu o papel de Santo dos Anjos.

 

E quis a trama da vida real que ele gravasse suas últimas cenas, mas não chegasse a vê-las. Domingos nos deixou de uma forma estúpida, o que só aumenta a nossa inconformidade. Penso na família dele. Seu filho mais velho tem apenas 12 anos. O mais novo, 5. Nos últimos 8 anos, Domingos vinha literalmente emendando um trabalho no outro, o que me leva a deduzir que ele abriu mão do seu tempo com a família para que nós pudéssemos usufruir do seu talento, que foi maior que as dimensões do São Francisco.

 

Não o conheci pessoalmente, mas o conheci por dentro. Por tudo o que ele provocou em mim, posso dizer: Domingos nos fará falta.

 


Nem um autor de novela ousaria escrever uma história tão triste - 1Carol Maglio é a blogueira conhecida como Pãozim De Queijo, além de produtora audiovisual, apresentadora de TV, modelo plus size e especialista em mídias sociais.
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Imagem: Globo/Pedro Curi